Ao contrário da maior parte dos países, o Brasil não tem frota de carros movidos a diesel. O combústivel, muito popular na Europa, principalmente pelo baixo consumo, não pode ser usado aqui pois paga menos impostos e seu produto é insuficiente para a demanda, obrigando a Petrobras a importá-lo.
De acordo com a lei, só podem usar o diesel veículos de carga (ônibus e caminhões) com capacidade para transportar mais de uma tonelada ou 13 passageiros. A mesma portaria explicita que a exceção é feita para carros “denominados jipes, com tração nas quatro rodas, caixa de mudança múltipla e redutor” além de outros quesitos como determinada altura livre do solo mínima e ângulos de ataque e saída acima de valores pré-determinados. Mas, às vezes, a lei acaba sendo contornada de maneira criativa.
Foi o caso do monovolume Kia Carnival, que tinha carga declarada de 600kg na Europa, mas que desembarcou no Brasil com capacidade superior a mil quilos. Outro exemplo mais recente envolve modelo feito no Brasil. O todo-terreno Agrale Marruá foi desenvolvido para atender à especificação do Exército para um veículo tático não-especializado, com capacidade para terrenos acidentados.
O veículo, que vem equipado com motor a diesel 3.8 fabricado pela MWM, atende a todos os quesitos da lei, menos um: não tem caixa de redução. Até aí nenhum problema, já que os carros produzidos para o Exército não precisam ser homologados. No entanto, a Agrale disponibiliza versão civil do utilitário. O jipe foi desenvolvido para uso de frotistas como concessionários de energia elétrica ou mineradoras que precisam de um veículo adequado para uso severo. Mas nada impede que seja comprado por particulares. De qualquer forma, para ser vendido e emplacado, o carro deve ser aprovado para poder receber o número do Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam). Aí, começa o imbróglio.
De acordo com Pedro Soares, diretor de Vendas e Marketing da Agrale, apesar de não contar com uma caixa de redução propriamente dita, o Marruá se enquadrou na lei por ter o que ele chama de primeira tratora, com relação de 6.8/1, ou seja uma primeira muito curta para conferir força. Cada giro da roda corresponde a 6,8 giros do motor. “É mais reduzida do que a primeira de outros carros com motor a diesel. O Troller tem relação de 4.07/1, o Land Rover Defender 3.69/1 e a S10 4.33/1.” Aliás, Soares afirma que mesmo a versão militar do carro já havia sido homologada para que o Exército pudesse emplacar os veículos se necessário. Dessa forma, não foi problema a homologação da versão civil.
Questionado sobre o processo, o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), responsável pela homologação de todos dos carros vendidos no Brasil informa que “pelas características apresentadas a caixa é considerada um redutor”.
Culpa do próprio processo de homologação. Com exceção dos níveis de emissão de poluentes, os veículos não são submetidos a testes para verificar a conformidade com as normas. Cabe aos próprios fabricantes produzir documentação demonstrando que o seu produto está de acordo com a lei. Rubem Melo, engenheiro da Transtech Engenharia e Inspeção S/C, explica “Se houve um estudo demonstrando que a relação de marcha conferiria a mesma capacidade de rampa, a Agrale poderia estar calçada”. É como deixar a raposa tomar conta do galinheiro.
Análise da notícia
O Brasil não deixa de ser o ‘país do jeitinho’. Desde que haja interesse político ou financeiro, tudo se resolve. Até a caixa de redução que pode ser substituída por uma “primeira tratora”, explicação surreal, ilegal e sem nenhum amparo tecnológico. Certo ou errado, o problema é que outras montadoras, para aplicarem o cobiçado motor diesel, são obrigadas a equipar seus jipes com a caixa redutora, com um custo significativo. A Agrale conseguiu ‘dar um jeitinho’ conquistando a ‘amizade’ de sabe-se lá qual autoridade de Brasília… (Boris Feldman)