Esqueça a data de hoje. Volte 40 anos, para 23 de janeiro, sexta-feira, de 1970. Na capa do Estado de Minas o agito internacional com o receio do então presidente norte-americano, Richard Nixon, temendo um choque fatal com a Rússia e com a China, era o destaque, ao lado de chamadas para assuntos como: "Calça justa já muda os americanos" e "Cientista defende a pílula". Temas que, sem dúvida, foram fundamentais para o mundo atual. Mas em Belo Horizonte o que não saía da boca da moçada era a corrida do domingo anterior: a prova dos 500 quilômetros de Belo Horizonte, vencida por Toninho da Matta e considerada a melhor entre todas as corridas de rua realizadas na capital mineira.
Na véspera, o piloto Marcelo Campos bateu em uma picape e morreu. Marcelo havia feito alguns ajustes em seu Puma, número 38, e foi ao local da prova dar algumas voltas para conferir as modificações. "O trânsito estava liberado para carros, mas não considero que foi irresponsabilidade, pois a cidade era diferente, naquela época um carro passava lá a cada meia hora", lembra Toninho da Matta. Marcelo tinha sido campeão brasileiro de carros nacionais, no Autódromo da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, em 1969.
Veja mais fotos dos 500 quilômetros de BH!
Com o acidente, a corrida, que já reunia vários ingredientes, ganhou um componente trágico. Grande parte dos pilotos mineiros, que eram amigos de Marcelo, saíram do velório e foram para o local da prova. Se juntaram a eles pilotos de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, alguns de destaque internacional, como os irmãos Fittipaldi (Wilson e Emerson), além de Luis Pereira Bueno. Emerson, era o grande favorito, por ser campeão da Fórmula 3 inglesa. No total, 28 veículos, entre carros de rua preparados e protótipos.
Porém, o carro do favorito, o Corcel número 74, em que fazia dupla com Boris Feldman, apresentou uma série de defeitos e abandonou a prova na 10ª volta. Já Wilson pilotava um Fusca, com dois motores, mas que teve defeito na barra de direção, e Toninho conseguiu abrir uma vantagem de nove voltas. Quando conseguiu resolver o problema, Wilson retornou à prova, ultrapassou Toninho, mas depois quebrou definitivamente, abandonando a corrida.
Apesar da saída dos irmãos Fittipaldi, a tarefa não foi fácil, como conta Toninho: "Quando faltava uma hora para terminar, o freio traseiro acabou, mas não podia desistir, porque estava liderando. Na hora era o Ivaldo (Ivaldo da Matta, primo de Toninho, já falecido) que pilotava. Ele desceu do carro e o Chico Landi... Poxa, o Chico era o cara para a nossa geração. Naquela época, ele tinha 65 anos, que é a idade que eu tenho hoje. O Chico disse: 'Toninho, entra no carro'. O problema era que a tubulação traseira, que era de cobre, vazava óleo e, por isso, não tinha freio. O Chico falou para o mecânico bater o martelo no cano de cobre e isolar o freio traseiro e ficar só com o dianteiro. Terminei a corrida assim, administrando".
Chico Landi era uma espécie de chefe da equipe e foi o primeiro piloto brasileiro a competir na Fórmula 1, além de ter sido o primeiro a preparar o Opala 21 (leia mais sobre o carro campeão na página 12). O Estado de Minas do dia seguinte da prova relatou que "se alguns corredores tinham cara de sono, no dia da corrida, foi porque passaram a noite em claro velando Marcelo". Aliás, alguns dos troféus, macacões, capacetes e objetos da história de Marcelo Campos podem ser vistos no Museu da Casa de Cultura Carlos Chagas, em Oliveira, Região Centro-Oeste.
Início
A origem das corridas dos rapazes que chegaram a aglutinar 150 mil pessoas para vê-las (em uma época que a população de Belo Horizonte não passava de 1 milhão de pessoas) não é um exemplo a ser seguido. Kid Cabeleira, um dos pilotos da época, hoje titular de cartório na cidade, onde é conhecido como Luis Carlos da Fonseca, recorda: "Juntávamos uns 10, 15 carros do pessoal que andava com o pé embaixo e íamos para os nossos circuitos: o Anel Rodoviário, que era bem mais estreito, o Bairro Engenho Nogueira e outros pontos", lembra Kid. Ele diz que existia o informal troféu DET, alusão a Sigla do então Departamento Estadual de Trânsito, e que aqueles que escapassem das motocicletas Harley-Davidson dos policiais eram premiados.
Além dos pegas urbanos, a turma, que segundo relato de Kid era conhecida "tanto na sociedade mineira quanto na lista do DET", promovia pegas de Belo Horizonte até Juiz de Fora, e de lá iam para Matias Barbosa para depois voltar à capital. Havia também rachas mais curtos, entre BH e Ouro Preto ou BH e Lagoa Santa.
Já Toninho da Matta diz que antes de correr no Mineirão era da turma do kart. "O meu pai me bancava para correr de kart, mas para arrumar um carro eu tinha que me virar", conta Toninho. A solução encontrada por vários pilotos foi fazer parceria com uma concessionária da época, que bancava o carro e a preparação em troca da publicidade, que não era pequena. Os pilotos tinham status de artista na cidade, as corridas eram transmitidas ao vivo, porém, nem o mais famoso deles era muito certo da fama que tinha: "Era uma coisa tão inédita que muita gente pensava que nós éramos doidos. Que correr daquele jeito era coisa de maluco", recorda Toninho.
Anatomia da fera
Opala 21 de Toninho da Matta tinha uma excelente relação peso/potência e foi totalmente modificado para se tornar o símbolo da era dourada do automobilismo da capital mineira
Instigados a comentar suas lembranças das corridas no Mineirão, nas décadas de 1960 e 1970, no Blog do Boris (www.vrum.com.br/blogdoboris.), os internautas deixaram diversos comentários, que quase sempre se referem ao Opala 21, o carro guiado por Toninho da Matta. O piloto estima que na melhor fase, o peso do carro era 900kg e a potência de quase 400cv. "Ali na Catalão (Avenida Carlos Luz) que era terra de ninguém chegava a 7.000rpm em quarta marcha, perto dos 200km/h", lembra Toninho, que detalha a preparação do carro.
Motor
"Era um Opala seis cilindros de três marchas. Liguei para o Chico Landi e levei o carro para São Paulo. Passei uma semana lá com ele fazendo o motor. Virou um carro de rua com motorzão. Eu vi que era uma droga de guiar, mas o Chico era da velha guarda e achava que só o motor ganhava corrida. Depois (já em Belo Horizonte) coloquei mais três carburadores duplos e trocamos o câmbio para um de quatro marchas."
Carroceria
"Depois liguei para o Wilsinho e para o Emerson (os irmãos Fittipaldi), na verdade mais para o Wilsinho. Voltei para São Paulo e fiquei 10 dias lá. Mexemos no carro todo. Tiramos as portas de chapa, os vidros e os forros e colocamos outras de plástico. Ficou só a casca. O capô e a tampa traseira passaram a ser de fibra de vidro."
Suspensão
"Arrumei pneus Firestone Indie de 12? na traseira e 10? na frente. Mandei fazer as rodas. Tinha uma caminhonete da Chevrolet com tração positiva, não era a mesma coisa dessas autoblocantes. Nós colocamos o eixo dessa caminhonete na traseira. As rodas ficavam um palmo e meio para fora da carroceria, por causa disso colocamos quatro amortecedores na traseira."
Fim
"Esse carro não existe mais. Fizeram uma rifa com ele e foi mudando de dono até acabar. Já fui procurado para fazer uma réplica, pode ser uma boa ideia. Foi um carro que fez história. Todos os boys da cidade andavam de Opala."
Outros carros
Foram cerca de cinco provas no circuito do Mineirão. Antes, em 1949, houve corridas de carreteras em volta da Lagoa da Pampulha e, em 1967, uma corrida no Bairro Cidade Nova, recém-loteado. No circuito do Mineirão, além de Toninho com o Opala, outros carros e pilotos dividiam a atenção da torcida. Kid Cabeleira dirigiu dois protótipos e um Simca GTX Esplanada número 82. Os protótipos eram feitos em BH, como lembra Kid: ?Fazíamos a gaiola de arame macio, passávamos os moldes de madeira e depois soldávamos em um chassi encurtado de Volkswagen?. Outros que se destacaram foram o Puma GT de Marcelo Campos, o Corcel de Boris Feldman, o Fusca de Clóvis Banana, o Opala de Ronaldo Augusto Ferreira e a Alfa de Martius Jarjour Carneiro.