A saída da Ford do Brasil como fabricante de veículos deixou os clientes que esperam por uma solução definitiva para os sérios defeitos apresentados pelo câmbio Powershift ainda mais inseguros. Passados cinco anos desde que a marca propôs a primeira solução para as anomalias apresentadas nos modelos New Fiesta, Focus e EcoSport equipadas com a transmissão automatizada, não faltam proprietários que já submeteram por repetidas vezes seu veículo ao reparo sugerido pela Ford, evidenciando que as soluções não têm eficácia.
Apesar das apurações feitas pelos Ministérios Públicos de Minas Gerais e São Paulo até o momento, a Ford vem se salvando de dar uma solução definitiva para o problema por meio de “manobras” disfarçadas de Programa de Satisfação do Cliente, que, de forma geral, estenderam a garantia de algumas “fornadas” de veículos defeituosos, mas sem a clareza e o rigor de um recall. Não raro, estes reparos “em garantia” geram custos adicionais aos proprietários, que precisam pagar quantias significativas.
O descaso é tamanho, que a própria Ford não se interessou em esclarecer à reportagem quais foram os modelos envolvidos nessas campanhas, assim como os anos que abrangem e quais componentes tiveram a garantia estendida. Como fica evidente nos diversos relatos de proprietários ouvidos pela reportagem (disponíveis abaixo), esta falta de transparência resulta em uma não uniformidade no tratamento dos clientes afetados nas concessionárias.
A partir da notificação do Procon-SP, a Ford estendeu a garantia de alguns componentes do câmbio de três para cinco anos, ou 160 mil quilômetros, para os modelos New Fiesta e Ford EcoSport 2013 e 2014, e do Focus 2014. Depois, o fabricante concedeu garantia de 10 anos, ou 240 mil quilômetros, para o módulo de controle de transmissão (TCM) dos três modelos, fabricadas entre 17 de maio de 2012 e 30 de junho de 2015. A Ford ainda convocou proprietários do New Fiesta, EcoSport e Focus fabricados entre 17 de maio de 2012 e 2 de fevereiro de 2015 para a atualização do TCM no intuito de ampliar a capacidade de autodiagnostico. Diante na negação da Ford em munir a reportagem com informações, os dados acima foram obtidos em arquivos de fontes especializadas.
Os principais sintomas apresentados pelos modelos equipados com o câmbio Powershift são trancos, reduções abruptas e acelerações intempestivas. Mas, sem dúvida, o mais grave nesta história são os diversos relatos de proprietários que se envolveram em acidentes, principalmente por uma súbita falta de potência. Em um primeiro momento, a Ford descartou a necessidade de realizar um recall porque a falha "não gera riscos à segurança dos usuários, tanto que nenhum acidente com vítimas por conta do problema foi constatado", descartando a possibilidade de perda de força motriz. Já no comunicado sobre a reprogramação do módulo TCM, a Ford admite a possibilidade de ocorrer a perda de potência do veículo. Além de não disponibilizar informações, a Ford não se interessou em prestar qualquer outro esclarecimento à reportagem.
Vai ficar barato?
E a preocupação dos consumidores brasileiros lesados pelas falhas do câmbio Powershift a despeito da saída da Ford do Brasil é legitima. É que a opção da marca de não mais atuar como fabricante no país elimina a possibilidade de diversas sanções aplicáveis pelo Código de Defesa do Consumidor, como a suspensão das atividades e a interdição do estabelecimento, o que já ocorreu voluntariamente.
No final de 2020, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão de defesa do consumidor do Ministério da Justiça, instaurou processo contra a Ford a partir da constatação de que existe uma relação entre o câmbio Powershift e a perda de potência relatada por vários clientes da marca. De acordo com Leonardo Marques, coordenador-geral de Consultoria Técnica e Sanções Administrativas do Senacon, o processo ainda está em apuração, sem uma conclusão definitiva, e a Ford ainda poderá se pronunciar.
De acordo com Marques, se confirmado o vício, seria o caso de um recall, já que a situação expõe o consumidor a riscos. Porém, em caso de condenação, o Senacon não tem o poder para resolver situações individuais, cabendo ao consumidor que se sentir lesado a busca de um acordo junto à Ford ou uma ação junto ao Poder Judiciário. Segundo o coordenador-geral, a determinação de ressarcimento de valores não cabe à Senacon. Entre as sanções previstas pelo CDC, a única que pode ser aplicada à Ford é a multa, que pode variar entre R$ 700 e R$ 11 milhões.
Enquanto isso..
Enquanto isso, nos Estado Unidos, onde o câmbio Powershift apresentou os mesmos problemas relatados no Brasil, a Ford tem se comportado de maneira diferente. De acordo com reportagem publicada pelo Detroit Free Press – que já havia denunciado que as falha da transmissão já eram conhecidas pela marca antes do lançamento –, a marca está fazendo acordos com clientes lesados.
Em uma ação coletiva que pode envolver até dois milhões de clientes – proprietários do New Fiesta (fabricados entre 2011 e 2016) e do Focus (de 2012 a 2016) –, o fabricante está disposto a pagar até US$ 22 mil para a recompra dos veículos problemáticos. Em 2019, a Ford gastou 47 milhões de dólares na recompra de 2.666 veículos.
O que dizem os clientes da Ford?
Conversamos com vários proprietários de modelos equipados com o câmbio Powershift, que reclamam desde a acentuada desvalorização dos veículos no mercado de usados (a maioria conta que não teria coragem de passar a "bomba" para frente), passando pelo estresse de ficar sem o veículo por dias ou meses, além dos apuros que já passaram por causa da transmissão defeituosa.
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Mário Fábio Titoneli – Ford Focus 2014
Foi assim, durante um traumático passeio com a família, que o Ford Focus de Mário deu o primeiro aviso de transmissão superaquecida, dando início a mais uma saga do câmbio Powersift. Depois de levar o carro à concessionária, outro susto. Mesmo com a garantia estendida, o orçamento do serviço em uma autorizada de Juiz de Fora (MG) veio no valor de R$ 7 mil. Foi o valor cobrado pelo kit atuador e um jogo de cilindros de freio como condição para a troca do módulo TCM e a embreagem. Outra condição estabelecida pela concessionária foi a troca do coxim do motor (trincado), da bomba de alta pressão defeituosa, com orçamento de R$ 3 mil. Quando o serviço foi autorizado, não foi necessário trocar o TCM, os atuadores e os cilindros, se resumindo à troca da embreagem. Portanto, na parte do câmbio o proprietário não precisou gastar. Depois desse episódio, Mário foi atrás do histórico do veículo e descobriu que, com 50 mil quilômetros rodados, foi a terceira vez que trocaram a embreagem do mesmo.
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Jefferson Oliveira Reinoldi – Ford Focus 2014
Jefferson comprou seu Focus usado, com 47 mil quilômetros rodados, acreditando que estava amparado com garantia estendida do câmbio. Logo o veículo apresentou falha ao engatar as marchas e os problemas foram sanados em garantia. Um ano depois, cruzando uma avenida de Porto Alegre, o veículo parou de engatar as marchas e ficou imóvel no meio do cruzamento, acusando superaquecimento. Por sorte, não aconteceu um acidente e o carro foi empurrando até um local seguro. Com 71 mil quilômetros, o carro foi de novo para a concessionária, mas, desta vez, a garantia não foi concedida para a troca dos atuadores, que custariam em torno de R$ 7 mil. A concessionária ainda se “ofereceu”, por R$ 841, para abrir o câmbio e enviar fotos para Ford, mas sem garantir que a cobrança dos atuadores seria revertida. O proprietário retirou o veículo sem efetuar o serviço e levou para outra autorizada, onde, após 25 dias com o carro parado, a troca dos atuadores em garantia foi novamente negada, abrangendo apenas o TCM do câmbio. “Não sou especialista técnico e não sei quais as peças compõem a embreagem, mas nunca fui informado de que existiam certas peças da embreagem que não faziam parte da garantia estendida, jamais teria comprado o carro sabendo dessa informação”, disse. Como o comerciante precisa do carro, arcou com R$ 3.900 com a compra dos atuadores.
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Cláudio Schmitz Gonser – Ford Focus Sedan 2014
Cláudio descreve sua experiência com o modelo da Ford como uma “trágica e dramática novela pessoal”. Antes de escapar do acidente relatado acima, o modelo já havia apresentado problemas em 2016, com sintomas como lentidão nas retomadas, trepidação ao realizar as trocas em baixas rotações e diminuição da potência, quando foram efetuadas a troca das velas e reprogramação do módulo TCM.
Poucos meses depois, os problemas se agravaram, apresentando subitamente perda de potência, solavancos e a recusa de trocar marchas. O veículo foi para a concessionária, tendo trocado o módulo TCM e a embreagem em garantia. Após o quase acidente relatado no início, o veículo foi mais uma vez para a autorizada, onde deram o diagnóstico de pane seca (sendo que o carro informava autonomia de 120 quilômetros), mas, por algum motivo, fizeram a reprogramação do módulo TCM. O problema aconteceu uma terceira vez, com os mesmos sintomas, obrigando Cláudio a realizar “manobras heroicas” no Anel Rodoviário de Belo Horizonte para escapar de um acidente. Resultado: segunda troca do módulo TCM e da embreagem. Seis meses depois, houve uma nova pane, com os mesmos reparos em garantia. Dois meses depois, a quinta pane, com os mesmos sintomas: perda de potência, solavancos e a não troca das marchas. Apesar disso, o diagnóstico da Ford foi o mau funcionamento dos atuadores, com um custo de R$ 5.500. Como depende do seu veículo para as tarefas cotidianas, Cláudio se viu obrigado a autorizar o conserto.
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Enio Marques Júnior - Ford New Fiesta 2013
A primeira troca de embreagem no Ford Fiesta de Enio se deu em 2016, aos 13 mil quilômetros, quando o carro apresentava apenas patinação na troca das marchas. Mas a coisa piorou muito no fim do ano passado, quando as marchas eram trocadas apenas em rotações altas e, o mais perigoso, entrando em “neutro” com o veículo em movimento. Enio relata que passou por diversas situações de perigo, desde uma simples saída do semáforo, onde o carro perdeu força e os outros carros precisaram frear, até uma ultrapassagem na estrada em que o câmbio entrou em “neutro” e foi preciso levar o carro para o acostamento. Mesmo sem abir o câmbio, a autorizada afirmou que o problema era na embreagem, e negou a troca em garantia. Pelo comportamento do veículo, que estava conseguindo trocar marchas, o proprietário acreditava que o problema era no módulo TCM. Porém, para a análise do caso a autorizada queria cobrar uma quantia. Para trocar novamente em garantia a embreagem, assim como o módulo TCM, foi preciso fazer uma reclamação no portal de intermediação www.consumidor.gov.br.
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Whalter Duarte – Ford New Fiesta 2013
O “aperto” relatado por Whalter aconteceu no fim do ano passado, completado um ano em que o motorista de aplicativo comprou o veículo usado em uma concessionária Ford de Brasília. Levou a uma concessionária, mas a Ford negou, informando que a garantia do modelo era válida só até junho de 2018. O proprietário conta que leu o relatório da autorizada informando que havia problema em um atuador, causado por vazamento do fluido do retentor. A revolta de Whalter é ter que pagar por um serviço que na verdade é um defeito crônico que nem mesmo a Ford conseguiu sanar.
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Cristiano Gomes – Ford Focus 2016
Com 20 mil quilômetros, Cristiano já tinha precisado trocar a embreagem do seu Focus. Mas, o pior ainda estaria por vir, quando, aos 60 mil quilômetros, o proprietário passou por um momento delicado junto com sua família. Em plena Via Dutra (uma via de trânsito rápido em São Paulo), no horário de pico, o veículo simplesmente apagou na faixa do meio. Além o motor, direção e freio também deixaram de funcionar. Cristiano desceu do carro, onde a mulher e a filha de 5 anos estavam, para tentar sinalizar a parada. Por sorte, uma viatura da Polícia Civil passava pelo local e parou o trânsito para que o veículo fosse empurrado para um local seguro. “Minha esposa disse que nunca mais entra no veículo. Graças a Deus, temos um segundo carro. Até agora estou pensando no que fazer, já que se trata de um problema crônico e não adianta levar de novo para consertar”, explicou.
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Juliana Ribeiro – Ford EcoSport 2013
O Ford EcoSport de Juliana apresentou problemas desde sua aquisição, em setembro de 2013, com superaquecimento do câmbio quando o trânsito estava lento. Em todas as revisões, a proprietária reclamava de trepidação, mudança de marchas com as rotações altas e trancos durante as trocas. A solução encontrada sempre foi a reprogramação do módulo TCM. Como tantos outros, Juliana também teve que conviver com os riscos de um câmbio “genioso”. “Era comum acontecer de o veículo deixar de dar uma resposta à aceleração, ficando inicialmente lento, para depois acelerar de uma vez só. Era tão evidente, que quem estava ao lado percebia a anomalia. Em uma dessas vezes, atravessando um cruzamento, eu perdi o controle do carro e acabei esbarrando uma das rodas do meio-fio”, recorda. A partir daí, o câmbio também deixou de engatar a ré. Ao levar o veículo à concessionária, Juliana foi informada que o veículo já não estava em garantia. Sem carro desde agosto do ano passado, o que compromete seu desempenho profissional, a proprietária acionou a Justiça.
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Jaime Benemond – Ford Focus Fastback 2015
Jaime define a compra de seu Focus como o “sonho de um aposentado que adquiriu um modelo topo de linha para acompanhá-lo para o resto da sua vida, mas se transformou num pesadelo graças à Ford com seu erro de projeto”. De lá para cá, já foram três trocas da embreagem, aos 30 mil, 54 mil e 85 mil quilômetros rodados, todas em garantia. Neste mês, a garantia acaba. “Depois disso, a cada 30 mil ou 40 mil quilômetros é por minha conta. Cerca de R$ 4 mil a cada vez”, relatou. Em conversa informal com um consultor técnico, Jaime foi aconselhado a vender o veículo, que não teria conserto definitivo. “Trocamos de duas a três embreagens dos carros com Powershift por dia", disse o consultor. Entretanto, o proprietário descarta esta possibilidade, com receio de colocar em risco a vida de outros.
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Fábio Alves Franco - Ford Focus 2017
Nos três anos que está com o veículo, teve problemas com o câmbio por cinco vezes – todas com intervalos entre 20 mil e 30 mil quilômetros –,sempre com os mesmos sintomas: o carro entra em “neutro” involuntariamente, muitas vezes até em velocidades mais altas ou ultrapassagens, patina nas trocas de marchas e trepida muito ao arrancar em subidas ou lombadas. Até a quarta vez, a Ford executou os serviços de troca de atuadores e embreagem em garantia, apesar do inconveniente de ficar sem o carro. Na quinta vez, eles já entregaram ao proprietário um orçamento de quase R$ 10 mil, alegando que seu carro já não está em garantia. Eles alegaram que, desta vez, o problema está só nos atuadores, mas também será preciso trocar a embreagem porque, quando tira o câmbio, o óleo contamina a embreagem. Apesar disso, Fábio garante que o veículo apresenta os mesmos sintomas das outras vezes. Fábio é taxista e seu veículo e encontra parado.
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Fábio Luciano Borssato – Ford EcoSport 2016
Adquirido em dezembro de 2016, o veículo de Fábio apresentou problemas apenas no fim do ano passado, aos 52 mil quilômetros, quando o câmbio passou a trocar marchas de maneira equivocada, ora com rotações muito altas, ora muito baixas, inclusive perdendo força. O proprietário levou o veículo a uma concessionária, que apresentou um orçamento de R$ 9.460,31, já que o veículo não estava mais em garantia. Fábio recorreu à Central de Atendimento da Ford que, 12 dias depois, autorizou a garantia de parte do orçamento original. Como precisa do carro, o proprietário acabou arcando com R$ 4.600 para ter o carro de volta.
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André Luis Bernardes Ferreira – Ford EcoSport 2013
Demorou apenas três dias para que o EcoSport zero-quilômetro de André superaquecesse pela primeira vez, tendo rodado poucos metros, quando foi realizada uma atualização no módulo TCM na concessionária. A primeira troca de embreagem foi feita em 2016, no fim dos primeiros três anos de garantia. De acordo com o proprietário, durante esse período, o veículo apresentou trepidação várias vezes, superaquecimento do câmbio, mensagem de câmbio defeituoso, barulho na caixa de embreagem, patinação e perda de potência. Dois anos depois, subindo uma serra, o veículo apresentou os mesmos sintomas. Porém, desta vez, a Ford não quis trocar a embreagem em garantia. André recorreu ao Juizado Especial Cível, que, por se tratar de vício recorrente e reconhecido pela Ford, determinou que o problema fosse resolvido. A marca realizou a troca da embreagem, pela segunda vez.